No enredo do filme Janela indiscreta, de 1954, dirigido por Alfred Hitchcock, o protagonista Jeff (James Stewart) é um jornalista que, após ter quebrado a perna, fica confinado em seu apartamento, de repouso. Depois de muito se entediar devido ao contato muito restrito com outras pessoas, ele resolve explorar as casas dos seus vizinhos, através de binóculos. O que nos faz gostar tanto desse filme, mesmo inconscientemente, é a nossa identificação com aquilo que se chama de “pulsão escópica”, ou seja, o desejo de ver.
Ultimamente, tenho entendido muito mais o protagonista desse filme. Assim como ele, estamos majoritariamente em casa e nosso contato mais constante com o exterior se dá, também, por uma janela – do Google Meet ou do Zoom. Mas a identificação maior acontece quando, em uma sala com mais de uma dezena de alunos, todos eles mantêm a câmera e o microfone desligados.
Não basta a luta de, no minuto em que a aula começa, o cachorro do vizinho latir, a criança gritar, o porteiro interfonar, o carro do ovo passar e sabe-se lá mais o quê. Não! Ainda é preciso que nós sejamos completamente privados de qualquer contato visual ou sonoro que demonstre, minimamente, que existe um interlocutor. Quando muito, em um ato de bravura e insubmissão, algum deles manda um “ok” via chat. Não há nenhum professor que nunca tenha se sentido um dementador, dos filmes do Harry Potter, diante dessa situação. Sim, um ser capaz de sugar a felicidade das pessoas ao redor e fazê-las perderem momentaneamente a esperança.
Voltando ao Jeff, a nossa vontade de ver e de saber é parecida com a dele. Por vezes, ouvimos vozes de fundo, bocejos, barulho do microondas e notificações do whatsapp que nos dão pistas do que acontece do outro lado. Ainda há os alunos – bem mais bonzinhos conosco – que descrevem suas ações: “professor, desculpa, eu estava comendo um pão e não consegui responder”. Na minha opinião, existe um desrespeito na medida em que o contrato consuetudinário professor/aluno foi rompido apenas por um lado. Nós continuamos de banho tomado, roupas apropriadas e plano de fundo previamente planejado, enquanto os nossos interlocutores se aproveitam do anonimato – supomos – para permanecerem de pijama, deitados e comendo pão.
Pouco a pouco, os rostos vão desaparecendo a ponto de, na volta às aulas presenciais, ser possível que ninguém mais se reconheça, como em um conto do Saramago. Contudo, não apresentamos sinal de desistência e, a despeito de todas as adversidades, seguimos em frente, professores e alunos, para o final de mais um ano letivo. Mas, como há muito chão pela frente, ainda nos resta a opção de pedir a compreensão daqueles que ficam nas sombras nos vendo e ouvindo, para que interajam ao vivo e a cores. A descoberta de Jeff, ao final de Janela indiscreta, não é nada agradável em um condomínio mas, quem sabe, nas aulas, não possamos descobrir uma nova forma de interação?