Como a gente discutiu no post anterior, um dos grandes riscos que a gente corre quando estamos há um tempo na estrada é a automatização dos nossos discursos. Há teorias que dizem que, em um dos círculos infernais, os dias se repetem eternamente, sem que nada seja, nunca, mudado.
Terrível.
Prova disso é o filme Feitiço do tempo: nada mais angustiante do que ver o Bill Murray, todo santo dia, fazendo aquela reportagem sobre o dia da marmota. Esse filme, aliás, é bastante pertinente ao assunto, já que é de conhecimento público que “a prática leva à perfeição”. A prática, não a repetição.
A prática do métier de professor nos leva a desenvolver o saber fazer, ou seja: aquele jogo de cintura com perguntas capciosas da turma, a capacidade de entender com mais rapidez qual é a dificuldade dos alunos, paciência para lidar com as tarefas que não são feitas no prazo, agilidade na hora de preparar aulas, organização do tempo de aula e várias outras questões que a prática da profissão nos ensina, e não a faculdade.
Por outro lado, se nós internalizarmos que fazemos todos os dias a mesma coisa, estamos reduzindo muito o nosso papel em sala de aula a meros repetidores de conteúdo, tais como gravadores de voz ou o carro da pamonha que passa na rua. É evidente que não se aplica e não nos faz felizes, pois acabamos não dando a devida importância nem aos alunos, nem a nós mesmos. Por mais que nos dê medo a abertura àquilo que não estava no script da aula, é interessante pensar que, se nós dermos aula no piloto automático, essa será também a postura do nosso aluno.
No fim, corremos o risco de sairmos da cama pela manhã como o personagem do Bill Murray no Feitiço do Tempo, que, de tanto repetir, foi ficando cada vez mais entediado e distante da perfeição:
Então, toda aula será como se fosse a primeira?
Sim e não!
Sim porque toda aula é única.
Heráclito de Éfeso teria dito que “um homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio não é mais o mesmo, tampouco o homem“.
Analogamente, o mesmo professor não pode dar duas vezes a mesma aula: primeiro porque cada aula dada nos ensina um pouco, de modo que a nossa melhor aula será sempre a próxima. Além disso, cada turma tem a sua especificidade – perfil dos alunos, interação entre eles, interesses mais ou menos acentuados etc. – e é impossível ter uma aula imutável, do início ao fim, e que dê certo sempre.
Todo professor entra em sala munido de um plano de aula com objetivos, exemplos e exercícios. O resto é no improviso. E é aí que nos vale a prática.
A prática nos leva, progressivamente, ao saber fazer. A repetição, por outro lado, nos conduz ao tédio.
Em O mundo de Sofia, Alberto Knox, o professor de filosofia por correspondência da protagonista, faz uma analogia para falar sobre a nossa capacidade de nos impressionarmos com o mundo dizendo que, quando o ser humano nasce, ele está sob os finos pelos de um coelho branco que se encontra dentro da cartola de um mágico. Ali, a criança observa, estupefata, tudo de magnífico que acontece dentro da cartola – ou no mundo. Contudo, conforme o tempo vai passando, essa criança vai entrando, cada vez mais, para dentro dos pelos do coelho, até que tem a visão obstruída por eles e não consegue mais observar a mágica do universo, ainda que ela continue acontecendo.
O professor precisa se manter na ponta dos finos pelos desse coelho: fora da zona de conforto, impressionável e, além disso, apaixonável por tudo que a sala de aula e o ofício de professor podem nos mostrar quando nos dispomos a ver, como a visão de mundo de cada aluno com o qual temos contato, os aprendizados que eles nos trazem ou o aperfeiçoamento da maneira de ensinar.
E aí, professor(a), já observou o universo da sua sala de aula hoje?