Dom Quixote de la Mancha é um romance de Manuel de Cervantes publicado entre 1610 e 1615. No enredo, acompanhamos a história de Dom Quixote, um fidalgo de meia idade que, após ter dispensado certa quantia de dinheiro em romances de cavalaria e de tê-los lido todos, acredita ser um cavaleiro e encarna as suas leituras. No seu percurso, ataca inimigos horripilantes com muita bravura, mesmo que sejam moinhos de vento transfigurados em dragões. Como não há herói que se sustente sozinho, tem ao seu lado seu fiel escudeiro Sancho Pança: um homem do povo – ao contrário do seu mestre, não tem a alcunha de “Dom” no nome – e um tanto caricatural, que tenta demover seu patrão das suas fantasias, mas acaba ele mesmo por se ver enredado nelas. O motor narrativo, que faz com que ambos se lancem às aventuras, é Dulcineia, dama pura e intocável, à qual Dom Quixote dedica todo o seu amor inatingível e admiração, e pela qual luta.
Embora as derrotas se acumulem umas sobre as outras, e Sancho Pança e todos que cruzam o caminho do Cavaleiro da triste figura zombem das suas fantasias ou tentem demovê-lo a abandoná-las, ele persiste, seguro de seus ideias, até que não pode mais, ao fim da narrativa. Consequentemente à perda dos ideais, daquilo por que lutar, torna-se o contrário do homem corajoso e implacável de antes: adoece, entristece e morre.
É possível que se leia a narrativa de Dom Quixote a partir de uma perspectiva sisuda, segundo a qual se tratava, afinal, de um homem tão pouco ciente da diferença entre literatura e realidade quanto se pensou das donzelas do século XIX em princípios do Realismo. Estas que, de tanto ler romances, terminavam inocentes demais e que chegaram até mesmo a motivar enredos em que caíam na lábia de um primo Basílio ou acabavam perdidas por conta de um adultério que, na fantasia, lhes traria um grande amor, como escreveram Eça e, sua fonte de inspiração, Gustave Flaubert. Não há, deixo bem claro, qualquer crítica ao Realismo, muito menos a Eça ou a Flaubert!, mas me parece muito redutor que vejamos em Dom Quixote o mesmo que se viu em Luísa ou em Madame Bovary: a fantasia dele consiste em combater aquilo que ele julga serem as injustiças do mundo. É, então, um personagem extremamente humano, cuja humanidade consiste no sonho mais puro de mudar o mundo desconsertado em que ele vive, mesmo que ele seja um membro da aristocracia, classicamente alienada do mundo exterior.
Vamos pensar, então, de outra maneira: o quixotesco está além da ingenuidade e da loucura, pois caracteriza o sonho de fazer o certo e contribuir para as mudanças de que o mundo precisa.
Por isso digo que o professor é, também ele, um Dom Quixote. A analogia nos permite dizer que temos alguns dragões disfarçados em ovelhas ou moinhos de vento, como o constante ataque à educação ou às Ciências Humanas, mas a força dessa comparação reside naquilo que faz do Cavaleiro da triste figura uma figura singular: o seu sonho de realizar as mudanças que ele julga necessárias. O professor também é, em essência, um sonhador. Sem o desejo de mudança e sem acreditar que a educação pode transformar o futuro, o que seria do professor? Existiria, talvez, mas mais apagado e cético do que o nosso conterrâneo Dom Casmurro, para ficarmos nas comparações literárias.
Não se trata de romantizar o papel do professor, porque, como já disse, a alienação passa muito distante de nós. Contudo, a única maneira de vencer uma pessoa que sonha é fazê-la acreditar que as suas causas são perdidas. Tampouco pretendo transformar o professor no início, meio e fim da educação: Paulo Freire afirmou que a educação não transforma o mundo, mas as pessoas, às quais caberá a tarefa de mudar, aí sim, o mundo. O professor tem, então, a (nem tão) simples tarefa de mudar as pessoas. Apesar do ceticismo que nos cerca, meus caros, pés no chão e mãos às armas (Dom Quixote também se formou mais de livros do que da espada) e, à falta de uma Dulcinéia de Toboso por quem lutar, a inspiração de que precisamos pode estar no brilho no olhar de um aluno que fica perplexo quando acaba de aprender algo novo e que ele julga relevante para a sua vida.