A Pontue reuniu um conjunto de 5 repertórios que poderiam ter sido utilizados na redação Enem 2023, cujo tema foi Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Vamos ver quais são eles!
1 – A mulher do terceiro milênio (Grupo Cócegas – Ingrid Guimarães e Heloísa Périssé)
Por que esse repertório é pertinente ao tema?
O vídeo acima, embora seja consideravelmente antigo (2004), é muito atual: ele faz uma crítica bem-humorada à quantidade de tarefas com as quais a mulher dita “do terceiro milênio” tem que lidar no dia a dia. A “modernidade” é irônica, porque consiste no acúmulo de funções. Para dar conta de todas elas, só fazendo toda essa ginástica mesmo.
Exemplo de uso em uma redação:
Exemplo de uso desse repertório no parágrafo de introdução:
O esquete “A mulher do terceiro milênio”, do grupo de comédia Cócegas, retrata, de forma caricatural, a rotina de uma mulher que acumula as tarefas de cuidar de sua aparência, da casa e da família e, ainda, de manter um emprego. A ironia do quadro reside na ideia de que não há modernidade alguma no fato de a mulher, que lutou e luta para ocupar o mercado de trabalho, ainda ser responsável por desempenhar todas as funções domésticas e de zelo com seus familiares. Logo, o trabalho de cuidado é de responsabilidade quase exclusivamente feminina, além de ser mal ou não remunerado, quando deveria ser partilhado no lar e bem pago, quando exercido fora de casa, respectivamente. Contudo, para que isso seja alterado, é necessário, antes, enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado exercido pela mulher no Brasil.
2. Domésticas (documentário de Gabriel Mascaro)
Por que esse repertório é pertinente ao tema?
O documentário Domésticas, dirigido por Gabriel Mascaro e lançado em 2012, mostra o cotidiano de 6 empregadas domésticas e de 1 empregado doméstico, um homem chamado Sérgio. Longe de querer defender que homens também desempenham tarefas de cuidado com pessoas e com a casa, o documentário explicita como o caso de Sérgio é exceção à regra. As demais são mulheres, pretas e socioeconomicamente desfavorecidas. Nesse caso, ainda que o trabalho de cuidado seja remunerado, nota-se que o salário é reduzido, pois as empregadas domésticas vivem de forma muito modesta.
Exemplo de uso em uma redação:
Exemplo de uso desse repertório no parágrafo de introdução:
No documentário “Domésticas”, de Gabriel Mascaro, o espectador conhece Sérgio, um homem branco que é funcionário doméstico. Longe de ser uma situação comum, Sérgio chama a atenção justamente por ser uma exceção à regra, uma vez que a maior parte dos trabalhos domésticos são realizados por mulheres, especialmente aquelas com outros traços de minoria: pretas e pobres. Embora sejam fundamentais para a economia, os trabalhos de cuidado são invisibilizados no Brasil e, por isso, são pouco ou nada remunerados – quando exercidos fora e dentro do próprio lar, respectivamente. Para enfrentar isso, é necessário vencer alguns desafios, entre os quais o principal é o machismo estrutural.
3. Banalização do mal (teoria de Hannah Arendt)
Por que esse repertório é pertinente ao tema?
Esse repertório, já velho conhecido dos estudantes, poderia se encaixar nesse tema, na medida em que a invisibilidade dos trabalhos de cuidado realizados pelas mulheres é um problema naturalizado no Brasil.
A atribuição dos trabalhos de cuidado à mulher é algo cultural, exercido pelas sociedades patriarcais, entre elas a brasileira, desde o surgimento do país. Nunca conhecemos, portanto, outra realidade, pois desde sempre essas funções foram impostas majoritariamente à parcela feminina.
Por conta dessa naturalização, a injustiça de esses trabalho de cuidado serem realizados por mulheres mal ou não pagas – o mal – foi banalizado e não é combatido de forma suficiente, nem por homens, nem pelas próprias mulheres.
Exemplo de uso em uma redação:
Exemplo de uso desse repertório no parágrafo de argumentação:
Embora a mulher tenha acumulado muitas conquistas no decorrer dos últimos anos, ainda está presa às tarefas domésticas e às de zelar pelas pessoas vulneráveis da família – crianças, idosos e deficientes -, o que se chama “trabalho de cuidado”. Este, então, é visto como uma obrigação feminina, e, por esse motivo, a maior parte das pessoas empregadas domésticas são mulheres. Além disso, o trabalho de cuidado é considerado fácil por ser cotidiano e exercido dentro de casa, que é nosso espaço de lazer. Assim, milhares de mulheres têm um vínculo empregatício realizando trabalhos de cuidado fora de seus lares, mas, mesmo que recebam salários para isso, estes são insuficientes. A consequência disso é que elas precisam trabalhar muito para compor a renda mensal, e a maioria ainda acumula funções: os trabalhos de cuidado são feitos tanto para a própria família quanto para terceiros.
4. Machismo estrutural
Por que esse repertório é pertinente ao tema?
Outro repertório bastante utilizado nas redações que tratam de questões relacionadas à mulher é o machismo estrutural.
Essa teoria defende que o machismo estrutural “se baseia na construção, organização, disposição e ordem dos elementos que compõem o corpo social, dando sustentação à dominação patriarcal, enaltecendo os valores constituídos como “masculinos” em direto e desproporcional detrimento dos valores construídos como “femininos” em todas as suas manifestações, em especial na mulher e nas sexualidades não heteronormativas.” (Fonte)
Isso quer dizer que a organização da sociedade está formatada para enaltecer valores considerados masculinos em detrimento dos femininos, e isso está enraizado de tal forma nos nossos contratos sociais que, às vezes, é difícil até notá-lo.
No que concerne ao trabalho de cuidado, ele é imposto às mulheres de maneira natural, visto que elas são consideradas mais atenciosas, carinhosas e responsáveis do que os homens.
O senso popular considera as mulheres uma massa idêntica, sem qualquer individualidade, que tem como característica principal a aptidão para cuidar. Logo, segundo esse mesmo senso, é ela que deve ficar responsável por zelar pela família e pela casa.
Exemplo de uso em uma redação:
Exemplo de uso desse repertório no parágrafo de argumentação:
Inicialmente, é necessário discutir sobre o principal mantenedor da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher: o machismo estrutural. De acordo com essa teoria, existe uma amálgama do sexo feminino que soma características comuns, entre elas a atenciosidade e o dom para o zelo. É evidente, porém, que nem todas as mulheres são iguais, pois têm suas individualidades e aptidões. Contudo, o machismo estrutural incorporado à sociedade ignora essas questões e impõe, culturalmente, o trabalho de cuidado à mulher. Isso, somado ao fato de que esse mesmo machismo faz com que os esforços femininos não sejam reconhecidos como se deve, culmina na invisibilidade do trabalho de cuidado. Isto é: trata-se de uma prática fundamental, difícil e exaustiva de responsabilidade quase exclusivamente feminina; mesmo assim, não recebe remuneração adequada, quando realizado fora de casa, nem atenção dos familiares ou do governo, quando feita no próprio lar.
5. Reels da Giovana Fagundes (comediante)
Por que esse repertório é pertinente ao tema?
Nesse vídeo, a Giovana explora, de maneira muito acessível, a questão de o cuidado ser direcionado especialmente – se não unicamente, em algumas famílias – às mulheres.
É recorrente, no vídeo, a aparição da questão social que impõe às mulheres os trabalhos de cuidado, sob a justificativa de que é natural da mulher cuidar.
As perguntas e respostas, embora muito baseadas em experiências pessoais, refletem a realidade de inúmeras mulheres que estão habituadas a cuidar, mas não a serem cuidadas, porque isso quebra os contratos sociais: espera-se que a mulher supra necessidades, mas não que demande atenção.
Assumir que o trabalho de cuidado é inerente à mulher é uma banalização do mal motivada pelo machismo estrutural, o que é muito cruel, porque tira o foco do quão problemático isso pode ser:
- Nenhuma ou insuficiente divisão de tarefas, o que retira o tempo livre da mulher para que ela realize outras ações, como estudar, se divertir, integrar o mercado de trabalho, descansar e cuidar de sua saúde física e mental;
- Má remuneração em trabalhos de cuidado exercidos fora de casa;
- Falta de auxílio governamental na manutenção da família.
Esses são apenas exemplos de problemas que ocorrem nesse contexto, mas muitas pessoas sequer param para pensar a respeito, afinal, como bem disse a frase temática, esse assunto é invisível.
Se o trabalho de cuidado vem crescendo, e as mulheres têm ficado sobrecarregadas, deveria ser função do Estado providenciar ajuda na manutenção dessas famílias. Alguns exemplos de ações são:
- Creches e centros de convivência para crianças e jovens com deficiência, ambos públicos;
- Casas de repouso subsidiadas pelo Estado;
- Disciplinas escolares voltadas para o trabalho de cuidado, a fim de ensinar e motivar os jovens do sexo masculino a realizá-los também.
Exemplo de uso em uma redação:
Exemplo de uso desse repertório na proposta de intervenção social:
Portanto, tendo em vista que o trabalho de cuidado é majoritariamente atribuído às mulheres por conta do machismo estrutural e da banalização desse mal na sociedade, é necessário que o governo intervenha. Dessa forma, cabe ao Estado criar creches e aumentar as vagas nas já existentes, além de aproveitar prédios ociosos para abrigar centros de convivência para crianças e jovens com deficiência. Isso será feito por meio da destinação de mais verbas à área da educação e da saúde. Realizando essas ações, pessoas vulneráveis, como crianças e jovens, incluindo os com deficiência, não dependerão exclusivamente das figuras femininas da sua família.
E você, quais repertórios usou na sua redação ou quais sugeriu aos seus alunos?